O CEMITÉRIO - Lima Barreto

O CEMITÉRIO - Lima Barreto

 

Pelas ruas de túmulos, fomos calados. Eu olhava
vagamente aquela multidão de sepulturas, que trepavam,
tocavam-se, lutavam por espaço, na estreiteza da vaga e
nas encostas das colinas aos lados. Algumas pareciam se
olhar com afeto, roçando-se amigavelmente; em outras,
transparecia a repugnância de estarem juntas. Havia
solicitações incompreensíveis e também repulsões e
antipatias; havia túmulos arrogantes, imponentes, vaidosos
e pobres e humildes; e, em todos, ressumava o esforço
extraordinário para escapar ao nivelamento da morte, ao
apagamento que ela traz às condições e às fortunas.
Amontoavam-se esculturas de mármore, vasos, cruzes e
inscrições; iam além; erguiam pirâmides de pedra tosca,
faziam caramanchéis extravagantes, imaginavam
complicações de matos e plantas - coisas brancas e
delirantes, de um mau gosto que irritava. As inscrições
exuberavam; longas, cheias de nomes, sobrenomes e
datas, não nos traziam à lembrança nem um nome ilustre
sequer; em vão procurei ler nelas celebridades,
notabilidades mortas; não as encontrei. E de tal modo a
nossa sociedade nos marca um tão profundo ponto, que até
ali, naquele campo de mortos, mudo laboratório de
decomposição, tive uma imagem dela, feita
inconscientemente de um propósito, firmemente desenhada
por aquele acesso de túmulos pobres e ricos, grotescos e
nobres, de mármore e pedra, cobrindo vulgaridades iguais
umas às outras por força estranha às suas vontades, a
lutar...
Fomos indo. A carreta, empunhada pelas mãos profissionais
dos empregados, ia dobrando as alamedas, tomando ruas,
até que chegou à boca do soturno buraco, por onde se via
fugir, para sempre do nosso olhar, a humildade e a tristeza
do contínuo da Secretaria dos Cultos.
Antes que lá chegássemos, porém, detive-me um pouco
num túmulo de límpidos mármores, ajeitados em capela
gótica, com anjos e cruzes que a rematavam
pretensiosamente.
Nos cantos da lápide, vasos com flores de biscuit e, debaixo
de um vidro, à nívea altura da base da capelinha, em meio
corpo, o retrato da morta que o túmulo engolira. Como se
estivesse na Rua do Ouvidor, não pude suster um
pensamento mau e quase exclamei:
— Bela mulher!
Estive a ver a fotografia e logo em seguida me veio à mente
que aqueles olhos, que aquela boca provocadora de beijos,
que aqueles seios túmidos, tentadores de longos contatos
carnais, estariam àquela hora reduzidos a uma pasta
fedorenta, debaixo de uma porção de terra embebida de
gordura.
Que resultados teve a sua beleza na terra? Que coisas
eternas criaram os homens que ela inspirou? Nada, ou
talvez outros homens, para morrer e sofrer. Não passou
disso, tudo mais se perdeu; tudo mais não teve existência,
nem mesmo para ela e para os seus amados; foi breve,
instantâneo, e fugaz.
Abalei-me! Eu que dizia a todo o mundo que amava a vida,
eu que afirmava a minha admiração pelas coisas da
sociedade - eu meditar como um cientista profeta hebraico!
Era estranho! Remanescente de noções que se me
infiltraram e cuja entrada em mim mesmo eu não
percebera! Quem pode fugir a elas?
Continuando a andar, adivinhei as mãos da mulher,
diáfanas e de dedos longos; compus o seu busto ereto e
cheio, a cintura, os quadris, o pescoço, esguio e modelado,
as espáduas brancas, o rosto sereno e iluminado por um
par de olhos indefinidos de tristeza e desejos...
Já não era mais o retrato da mulher do túmulo; era de
uma, viva, que me falava.
Com que surpresa, verifiquei isso.
Pois eu, que vivia desde os dezesseis anos,
despreocupadamente, passando pelos meus olhos, na Rua
do Ouvidor, todos os figurinos dos jornais de modas, eu me
impressionar por aquela menina do cemitério! Era curioso.
E, por mais que procurasse explicar, não pude.